sábado, 30 de janeiro de 2016

"Perdoa-me, Ferro!" (1807)

Uma Estória Alentejana


Igreja da Misericórida, Vila Viçosa
No ano de 1807, a crise diplomática com França e Espanha começava então a desenvolver-se e uma futura ameaça a desenhar-se, vindo a materializar-se definitivamente em Novembro, com a Primeira Invasão Francesa.

Apesar do estado em que o Exército Português se achava, a cagança e o espírito de corpo era sempre forte entre os soldados orgulhosos do seu regimento e particularmente da sua companhia.

D. Pedro José de Almeida Portugal, 3.º Marquês de Alorna, então tinha mudado o estado maior de Estremoz, onde estava desde que fora nomeado para Governador d'Armas do Alentejo, em 1805, para Vila Viçosa em início de 1807, na ocasião da augusta visita real do Príncipe Regente D. João e da Corte à vila, onde teve lugar o Brinco (ou Exercício) do Alto da Aboboreira, simulando a famosa batalha de Austerlitz com as tropas da província, em Fevereiro.


Foi na vida de guarnição de Vila Viçosa, pouco mais de um mês após o brinco, que se deu a curiosa história do anspeçada Fernando Ferro, de Infantaria 20 (Campo Maior), esfaqueado que foi pelo soldado Onofre José da Silva, de Infantaria 15 (2.º de Olivença),  no calor de uma discussão em que o primeiro acaba por ofender o bom nome dos bigodes dos Granadeiros de Olivença. Os bigodes eram um símbolo importante, e identitário, das duas companhias de élite, os Granadeiros, que cada regimento de infantaria portuguesa tinha na altura.

Segue a transcrição de uma carta do general marquês de Alorna ao então Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, D. António de Araújo de Azevedo, 1.º conde da Barca, informando-o de tudo o que aconteceu:

Illmo. e Exmo. Snr.


Fernando Ferro, Anspessada da 2.º Companhia do Regimento de Infantaria n.º 20, disputando com Onofre Jozé da Silva, Soldado da 6.ª Companhia do Regimento de Infantaria n.º 15, acabou dizendo que não sahiria de Villa Viçoza, sem fazer hum pincel de bigodes dos Granadeiros de Olivença, este segundo, picando-se do brio de que esta Nação hé tão susceptivel, com grande disconto de ser mal criado, puchou por huma navalha, dêolhe huma facada, e fugio.

O Commandante do Regimento tirou deste cazo a vantagem de reprezentar a indignidade da arma curta, empregada por hum soldado que professa valentia, e lialdade, e que se dezonra dobradamente, quando comete acção traidora com arma traidora. – quando todos estavão persuadidos disto, entra o criminozo pelo quartel, dizendo que tinha cometido o crime, e que alli vinha para lhe fazerem o que quizesse ; foi prêzo. 

Pela Semana Santa, estando eu na Mizericordia, dizem-me que o soldado de Campomaior me queria falar, e o que quis foi perdoar ao seu assassino, e pedirme incarecidamente que o mandasse soltar – não o mandei soltar, mas mandeio buscar, e contei-lhe o que estava sucedendo – ao que elle respondeo tu já me perdoaste, mas eu sempre te quero pedir perdão; e deitandoselhe aos pés, perdoame Ferro – neste cazo que eu não podia dicidir, dicidi em Nome de Sua Alteza Real, que ficasse solto, e espero que Sua Alteza Real me fassa a honra de me mandar dizer que fiz bem.

Deus Guarde a V. Ex.ª m. ann. Villa Viçoza. 27 de Março de 1807.


Illmo. e Exmo. Snr. Antonio de Araujo de Azevedo

      Marquez d’Alorna




Sete meses depois, Portugal seria invadido por forças espanholas e francesas. Ambos os regimentos foram licenciados e os que ficaram formaram a Legião Portuguesa, os de infantaria 15 para o batalhão de Caçadores, ao serviço de Napoleão, tendo servido na Rússia. Os que voltaram a casa retornaram pouco depois, na segunda metade de 1808, aos seus regimentos quando foram re formados.



Fonte:
Arquivo Histórico Militar, 1.ª Divisão, 13.ª Seção, Caixa n.º 25, n.º 8

MAIS sobre o Regimento de Infantaria n.º 20 (Campo Maior)

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