domingo, 31 de janeiro de 2016

O Apelo d'Armas (1793/1794)

uma família de Portugueses no início das Guerras Revolucionárias
Jorge Quinta-Nova

P: Como se chamão aquelles, q trazem espada para o serviço do Estado? 
R: Chamão-lhes gente de guerra, ou soldados.
Luiz Pedro Lecor, Lição XXX, das Leys Humanas. Educação de Meninos, 1746


Nos finais da década de 1780, uma mudança começava a fazer-se notar na sociedade portuguesa, fruto das convulsões políticas europeias, produto da onda de choque que foi a Revolução Americana.

É assim que, em 1787, mais por causa dos piratas do Norte de África do que propriamente da situação europeia, o Conde de Vale dos Reis, capitão-general dos Algarves, escreve uma carta à rainha D. Maria pedindo a construção de quartéis para o regimento de artilharia de Faro, ainda na sua maioria aboletado nas casas de cidadãos, desde que fora formado em 1776. Se esta carta é escrita a 27 de Novembro, logo a 1 de Dezembro, a vereação de Faro dá início a uma petição, recolhendo as assinaturas de quem estava nas Casas da Câmara, e depois indo às ruas chamar os que cidadãos que lá se achassem a assinar a importante petição. Entre as várias assinaturas, temos Carlos Frederico Krusse, ao topo, e Carlos Frederico Lecor e João Pedro Buys, mais para baixo.

O apelo do uniforme foi, porém, mais forte. O desejo de ser mais na vida que um comerciante, viajar pelo império, conhecer a India, o Brasil, Angola, ao invés de ficar preso a um escritório, contando metal e fazendo balanços. O espírito da época, romântico, idealista, liberal, a tudo isso encarreirava na alma do jovem Carlos e o inspirou a seguir a vida militar. 
Em menino, ficara-lhe a memória do rio Tejo e a vista da saída e chegada das naus. Em Faro, ao ir nadar à Ria, próximo ao Poço das Naus, o espírito inquisitivo de Carlos o fazia ficar observando as peças de artilharia de variados calibres armazenadas ali próximo, pondo à prática os cálculos aprendidos com os seus professores. No bom tempo, muito frequente no Algarve, as peças ficam cá fora, para que os artífices nelas pudessem trabalhar.

Regimento de Artilharia da Guarnição do Algarve

Faro, Novembro de 1793.
No ambiente de pequena cidade litoral de Faro, o regimento de Artilharia era uma absoluta novidade, tendo apenas sido formado em 1774. Começou por ser constituído por três companhias que vieram, desde logo, do extinto regimento de Artilharia de Lagos, a escassos 80 quilómetros de Faro. Depois vieram as restantes companhias do Porto e de outras guarnições, assim como o seu primeiro comandante, Diogo Ferrier. Não havia, nem nunca chegou a haver um quartel propriamente dito, mas edifícios alugados por toda a cidade, onde se tinha o material, os oficiais e artilheiros.

Na volta para casa, passando pela Praça da Rainha (Jardim Manuel Bívar, hoje), Carlos veria também com alguma frequência o Regimento de Milícias de Faro, treinando a marcha, com a banda tocando, marcando o passo. Com ele, os irmãos João, António, Jorge e o primo João Pedro, todos aproximando-se ansiosamente da idade militar, de correr e conhecer mundo, defender o império e a santa religião.


Os Sargentos Cadetes de Artilharia

Oficial subalterno, 1793
Regimento de Artilharia do Algarve
(ilust.: Bill Younghusband)
Na cavalaria e infantaria, desde 1757 que se aceitavam cadetes nos regimentos, tendo que fazer prova de nobreza. Na artilharia, porém, não havia este sistema, até porque era muito raro ter nobres portugueses a desejar servir nela. A artilharia, assim como a engenharia, era uma arma técnica que só teve, aliás, direito a uniforme, em meados do século. Apesar disso, o alvará de 16 de março de 1757, que criava os cadetes apenas para a infantaria e cavalaria era usado, por analogia, pela artilharia, confirmado oficialmente em 1767. A única diferença estava em que a artilharia não requeria prova de nobreza, mas, geralmente, jovens com boa formação e de famílias burguesas de algum respeito e envolvimento social, além do que estes cadetes tinham de estar nos números, ou quadros, das companhias.

Para a artilharia iam então muitos jovens filhos da burguesia mercantil urbana e a pequena nobreza rural de Lisboa, Porto, Faro e Estremoz, arautos castrenses do crescimento da classe média que apenas desta forma poderia obter o oficialato militar, a patente d’el-Rei. O seu percurso normal era assentar praça como soldado, e passar a cabo de esquadra, furriel e, finalmente, a sargento. Estivessem então em que unidade estivessem, pediam a passagem ao regimento de artilharia local e o reconhecimento como cadetes; nas folhas hoje guardadas pelo Arquivo Histórico Militar, aparecem designações como ‘sargento-cadete’ ou ‘cadete-sargento’, indicando-nos também que era fundamentalmente um termo oficioso. Sendo sargentos-cadetes, era apenas questão de esperar por uma vaga de 2.º tenente, o primeiro posto da carreira de oficial de artilharia. Mesmo assim, em situação de campanha, como no Roussilhão e Catalunha de 1794, cadetes chegaram a comandar batarias, como veremos mais adiante.



Irmãos de Armas


António Pedro e Jorge Frederico

Os dois irmãos mais novos, António Pedro, com 20 anos, e Jorge Frederico, com 18, assentam praça como voluntários e juram bandeiras primeiro, logo em 1788, no Regimento de Infantaria de Tavira, a trinta quilómetros de Faro. Com a sua educação, logo se vêem como sargentos-cadetes na artilharia de Faro, uma característica da artilharia portuguesa, não mais de um ano depois: Jorge a (10 de março de 1788), António a (10 de maio de 1788).


João Pedro

É já quando toda a França muda, mudando com ela a Europa, que os dois irmãos mais velhos decidem se alistar. João Pedro (1766-1844), nascido na rua de S. João da Matta, em Santos-o-Velho, foi primeiro. João, ao contrário dos dois irmãos mais novos, assentou praça diretamente em Faro, onde morava, no regimento de Artilharia do Algarve. Fê-lo a dezembro de 1792 ou janeiro de 1793. Menos de quatro meses depois, embarcavam os três para a Catalunha, apenas Carlos Frederico ficou, assentando praça de voluntário na Fortaleza da São João da Barra de Tavira, apenas um mês após os seus irmãos estarem já embarcados rumo à guerra.



sábado, 30 de janeiro de 2016

"Perdoa-me, Ferro!" (1807)

Uma Estória Alentejana


Igreja da Misericórida, Vila Viçosa
No ano de 1807, a crise diplomática com França e Espanha começava então a desenvolver-se e uma futura ameaça a desenhar-se, vindo a materializar-se definitivamente em Novembro, com a Primeira Invasão Francesa.

Apesar do estado em que o Exército Português se achava, a cagança e o espírito de corpo era sempre forte entre os soldados orgulhosos do seu regimento e particularmente da sua companhia.

D. Pedro José de Almeida Portugal, 3.º Marquês de Alorna, então tinha mudado o estado maior de Estremoz, onde estava desde que fora nomeado para Governador d'Armas do Alentejo, em 1805, para Vila Viçosa em início de 1807, na ocasião da augusta visita real do Príncipe Regente D. João e da Corte à vila, onde teve lugar o Brinco (ou Exercício) do Alto da Aboboreira, simulando a famosa batalha de Austerlitz com as tropas da província, em Fevereiro.


Foi na vida de guarnição de Vila Viçosa, pouco mais de um mês após o brinco, que se deu a curiosa história do anspeçada Fernando Ferro, de Infantaria 20 (Campo Maior), esfaqueado que foi pelo soldado Onofre José da Silva, de Infantaria 15 (2.º de Olivença),  no calor de uma discussão em que o primeiro acaba por ofender o bom nome dos bigodes dos Granadeiros de Olivença. Os bigodes eram um símbolo importante, e identitário, das duas companhias de élite, os Granadeiros, que cada regimento de infantaria portuguesa tinha na altura.

Segue a transcrição de uma carta do general marquês de Alorna ao então Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, D. António de Araújo de Azevedo, 1.º conde da Barca, informando-o de tudo o que aconteceu:

Illmo. e Exmo. Snr.


Fernando Ferro, Anspessada da 2.º Companhia do Regimento de Infantaria n.º 20, disputando com Onofre Jozé da Silva, Soldado da 6.ª Companhia do Regimento de Infantaria n.º 15, acabou dizendo que não sahiria de Villa Viçoza, sem fazer hum pincel de bigodes dos Granadeiros de Olivença, este segundo, picando-se do brio de que esta Nação hé tão susceptivel, com grande disconto de ser mal criado, puchou por huma navalha, dêolhe huma facada, e fugio.

O Commandante do Regimento tirou deste cazo a vantagem de reprezentar a indignidade da arma curta, empregada por hum soldado que professa valentia, e lialdade, e que se dezonra dobradamente, quando comete acção traidora com arma traidora. – quando todos estavão persuadidos disto, entra o criminozo pelo quartel, dizendo que tinha cometido o crime, e que alli vinha para lhe fazerem o que quizesse ; foi prêzo. 

Pela Semana Santa, estando eu na Mizericordia, dizem-me que o soldado de Campomaior me queria falar, e o que quis foi perdoar ao seu assassino, e pedirme incarecidamente que o mandasse soltar – não o mandei soltar, mas mandeio buscar, e contei-lhe o que estava sucedendo – ao que elle respondeo tu já me perdoaste, mas eu sempre te quero pedir perdão; e deitandoselhe aos pés, perdoame Ferro – neste cazo que eu não podia dicidir, dicidi em Nome de Sua Alteza Real, que ficasse solto, e espero que Sua Alteza Real me fassa a honra de me mandar dizer que fiz bem.

Deus Guarde a V. Ex.ª m. ann. Villa Viçoza. 27 de Março de 1807.


Illmo. e Exmo. Snr. Antonio de Araujo de Azevedo

      Marquez d’Alorna




Sete meses depois, Portugal seria invadido por forças espanholas e francesas. Ambos os regimentos foram licenciados e os que ficaram formaram a Legião Portuguesa, os de infantaria 15 para o batalhão de Caçadores, ao serviço de Napoleão, tendo servido na Rússia. Os que voltaram a casa retornaram pouco depois, na segunda metade de 1808, aos seus regimentos quando foram re formados.



Fonte:
Arquivo Histórico Militar, 1.ª Divisão, 13.ª Seção, Caixa n.º 25, n.º 8

MAIS sobre o Regimento de Infantaria n.º 20 (Campo Maior)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

"Congress": Uma missão norte-americana na Prata

Apontamentos de Henry Marie Brackenridge acerca da sua estadia em Montevideu e o contacto que manteve com o comando militar português de 20 a 26 de Fevereiro de 1818.

Henry Marie Brackenridge (1820), Voyage to Buenos Ayres Performed in the years 1817 and 1818 by Order of the American Government, London.

Traduzido do inglês e Introdução por Jorge Quinta-Nova


Nos último dias de Fevereiro de 1818, pouco mais de um ano após a conquista de Montevidéu pelas forças portuguesas, Henry Brackenridge, secretário de uma missão norte-americana a Buenos Aires, viajando na Fragata "Congress", visitou o Quartel-general de Lecor, oferecendo-nos um testemunho interessantíssimo para perceber a dimensão física do estado maior português em Montevidéu, assim como o posicionamento político de alguns oficiais portugueses com quem Mr Brackenridge falou.


Fragata USS Congress, em 1857, quase 40 anos depois

“Dessa forma procedemos para os alojamentos do general português, que ocupam uma das maiores e melhores casas na cidade. Entrámos num pátio ou veranda espaçoso, com galerias a toda a volta, por uma guarda de tropas negras, com aspeto brilhante e gorduroso, vestidos com uniformes vistosos. Nestes países os negros são preferidos para guardas e sentinelas, perto dos oficiais de distinção.

Depois de passarmos por vários salas, cruzando-nos com sentinelas e oficiais de serviço, que exibiam perante nós a pompa e circunstância do estabelecimento de um grande chefe, entrámos numa sala onde fomos polidamente convidados a nos sentar.

Mal tivémos tempo de nos refazer das reflexões produzidas por isto, para nós, uma cena inusual, quando o general ele próprio fez a sua aparição, com a qual ficámos extremamente impressionados. Ele é uma figura notavelmente elegante, alto e erecto, com uma dignidade nativa sem afetação de maneiras. Tem para cima de 55 anos, a sua tez é demasiado clara para um português; de facto, soubemos depois que ele é de descendência flamenga. A personalidade deste oficial não contradiz a impressão favorável que a sua aparência é calculada a fazer. A sua reputação é a de um soldado bravo e honrado, e de um homem polido e altruísta. Pelo que todos dizem, no entanto, ele não é excluvivamente devedor destas suas boas qualidades, pela sua elevação de um baixa estação de vida. O Sr. Bland apresentou-se através do White, que atuou como intérprete, e, após alguma conversação, no qual apresentou os motivos da visita, aceitou um convite geral para jantar no dia seguinte, o general ao mesmo tempo da forma mais prestativa prometia os seus serviços.”  [p. 45-469].


[Montevideu 23 de Fevereiro de 1818, 15 horas]

Paolistas, Soldiers of the East Bank of the Plata
Emeric Essex Vidal - Picturesque illustrations of
Buenos Ayres and Monte Video (1820)

“Encontrámos um grande número de pessoas reunidas, todos eles oficiais portugueses de terra e mar, exceptuando um cavalheiro num fato de cidadão, que, fomos informados, era um agente de Buenos Aires, num qualquer negócio especial; ele parecia um homem inteligente e aguçado, e o seu fato preto simples formava um singular contraste com os esplêndidos uniformes, e cruzes, e medalhas dos oficiais portugueses. Os divertimentos foram os mais sumptuosos. Era, com efeito, um banquete, composto de tudo à laia de peixe, carne e caça, que possa ser imaginado, sendo seguido por toda a qualidade de frutas que tanto este mercado como o de Buenos Aires podem oferecer. Os nossos ouvidos eram ao mesmo tempo regalados com a mais doce música da banda do General. Muitos destes oficiais, particularmente os ajudantes do General, era notavelmente belos homens; Acontece que me sentei junto a um deles, com quem pude conversar bastante. Ele expressou grande admiração pelas nossas instituições políticas, e caráter nacional, parte das quais eu obviamente tomei como cumprimentos. Ele falou dos patriotas de Buenos Aires como um grupo faccioso, incapaz de estabelecer um governo sóbrio; os seus líderes todos corruptos, e desejosos apenas de adquirir uma pequena dose de auto importância; o povo ignorante, e à mercê de demagogos ambiciosos: ele contrastava o caráter deles com as virtudes e inteligência do povo dos Estados Unidos. Ele falou de Artigas, como um atroz selvagem, e declarou um acontecimento recente de tratamento cruel aos seus prisioneiros; que o seu povo era, como todos os selvagens, totalmente insensível aos sentimentos da humanidade. Ele falou de uma forma pouco elogiosos acerca dos ingleses, e manteve a ideia que algumas vãs tentativas haviam sido recentemente feitas da sua parte, para induzir o Rei de Portugal a retornar a Lisboa.” [p. 52-53].


(original pode ser lido aqui)



quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Dr. A. Conan Doyle in His Tent at Bloemfontein


Esterograma: Dr. A. Conan Doyle in His Tent at Bloemfontein, South Africa (Keystone View)

#11832 – Dr. A. Conan Doyle in His Tent at Bloemfontein, South Africa. Keystone View company.



quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Postal: Sargento, 1.º Regimento de Infantaria de Bragança (1774)



Colecção de aguarelas do Coronel Ribeiro Arthur (in Arquivo Histórico Militar), n.º 219-25: Sargento do 1.º Regimento de Infantaria de Bragança, destacado no Rio de Janeiro (1774)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

As medalhas do Capitão Edmund Blackadder

Alguns conhecerão o Capitão Edmund Blackadder, personagem representada por Rowan Atkinson, na popular série da BBC nos anos 80. Pela análise das barretas que este usa na série, podemos não só perceber qual o seu passado, mas conhecer mais sobre as condecorações britânicas e verificar se há erros. 


Na primeira foto, em marcha, vê-se que Edmund tem duas barretas: (1) Queen's South Africa, (2) King's South Africa Medal, ambas por serviços na África do Sul, entre 1899 e 1902, nomeadamente na Guerra Anglo-Boer. Ambas as condecorações eram quase sempre atribuídas juntas, até porque se cruzam cronologicamente. 


Na segunda foto, ao telefone, Blackadder já usa a barreta da (3) 1914/1915 Star, que infelizmente é um erro, pois esta medalha só foi instituída em 1918. Em princípio, o único erro numa série escrita e representada por amantes da história desta época.




Na 3.ª foto, a grande novidade, pois por toda a 4.ª temporada da série, Edmund tenta furtar-se ao combate e a eventualidade de morrer: (4) Croix de Guerre francesa de 1914-18. Alguma coisa Edmund terá feito bem. 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Apontamentos históricos a respeito dos movimentos e ataques das forças do comando do general Carlos Frederico Lecor, quando se occupou a Banda Oriental do rio da Prata desde 1816 até 1823


Apontamentos históricos a respeito dos movimentos e ataques das forças do comando do general Carlos Frederico Lecor, quando se occupou a Banda Oriental do rio da Prata desde 1816 até 1823 com que a Divisão dos Voluntários Reaes evacuou a praça de Montevidéu (Por uma testemunha ocular)

[As memórias de João da Cunha Lobo Barreto, que foi em tenente de caçadores na Divisão de Voluntários Reais.]